Intervalo


«(...) em cada passo dessa linha
pode se machucar.
Azar!
a esperança é equilibrista
sabe que o show de todo o artista
tem de continuar...»
[Elis Regina, «O bêbado e a equilibrista»]



«Jingle bells, jingle bells...»

Na passada sexta feira uma multidão em fúria consumista atropelou mortalmente um empregado da loja da Wal-Mart, em Long Island, que estava no sítio errado à hora errada [cfr. aqui ]. Comentário de um colega:«It was crazy, the deals weren’t even that good». Não consta que a loja tenha sido encerrada após o infeliz acontecimento. Há mesmo notícia que, no dia seguinte, os consumidores, devidamente vigiados pela polícia, esperavam, em longas filas, a sua vez de entrar na loja. As autoridades estão a tentar entender o que se passou, mas admitem que não é certo que alguém venha a ser responsabilizado. Faz sentido. Deve ser por causa do espírito natalício...

Memórias da Caverna

A minha memória nunca foi grande coisa - fraccionada, selectiva, pouco rigorosa - e por isso nunca tive grande confiança nela. Habituei-me desde muito nova a não iniciar um raciocínio sem antes verificar a exactidão dos seus elementos, num procedimento semelhante àquele que os tripulantes de um avião usam antes de cada voo. Curiosamente, à medida que vou envelhecendo, tenho vindo a constatar que consigo lembrar-me de realidades, pensamentos, ideias, que permaneceram adormecidos nos meus neurónios durante anos, pelas razões mais bizarras e daí retiro um prazer estranho. Talvez esta seja a forma que a natureza encontrou de tornar menos penoso, quase aprasível, o inevitável envelhecimento. Vem isto a propósito do aplaudido discurso da minha Ilustre Colega Odete Santos, no XVIII Congresso do PCP, a decorrer no Campo Pequeno, e das memórias que me suscitou. A fazer fé no que os jornais transcrevem, a Dra. Odete Santos entende que impor o voto secreto nas votações internas dos partidos políticos é um «atentado» ao direito de expressão e de organização. Tempos houve em que o voto secreto era uma apostasia burguesa, um sinal de manobra contra revolucionária, uma marca das «forças» então designadas por «reacção». É verdade que nessa altura se falava em «ditadura do proletariado», expressão entretanto abolida do vocabulário revolucionário. Tempos longínquos esses, em que eu ouvia falar em «ditadura do proletariado» todos os dias, várias vezes ao dia, e simultâneamente lia, nos bancos do liceu, a «alegoria da caverna» de Platão, da qual hoje recordo, em particular, o seguinte excerto: «Supõe, então, como eles [os prisioneiros, obrigados a ver realidade através das sombras projectadas no fundo da caverna] reagiriam se fossem libertados das suas correntes e curados da sua ignorância e se as coisas se passassem assim: que se liberte um desses prisioneiros, que o forcem subitamente a erguer-se, a voltar o pescoço, a andar, a olhar para a luz; tudo isto o fará sofrer e, ofuscado pela claridade, não será capaz de olhar os objectos de que há pouco apenas via sombras. Pergunto-te: que poderá ele responder se lhe disserem que tudo quanto vira eram apenas vãs aparências, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objectos mais reais, ele vê de maneira mais certa? Se, por fim, lhe mostrassem cada um dos objectos, que desfilavam diante dele e o obrigassem, à força de perguntas, a dizer o que eram, não te parece que ficaria embaraçado e que as sombras que via antes lhe pareciam mais verdadeiras do que os objectos que lhe mostravam agora? (...) E se o forçassem a olhar a própria luz, não te parece que os seus olhos ficariam doridos e que se esquivaria e se voltaria para as coisas que podia olhar e lhes atribuiria maior realidade do que àquelas que lhe mostravam? (...) E se (...) o arrancassem da caverna e o fizessem subir a escarpada encosta e não o largassem senão depois de o terem arrastado para a luz do sol, ficaria deslumbrado pela claridade, incapaz de ver um só dos objectos que lhe apresentassem como verdadeiros?»