A justa medida


Arrumando livros veio-me à mão um, que comprei em 1982, era então estudante, intitulado «D. Duarte e os Prosadores da Casa de Avis», selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Nele encontrei um excerto do «Leal Conselheiro» onde D. Duarte apresenta para «a guerra contra os mouros» a justificação moral que passo a transcrever, com as notas de Rodrigues Lapa:

«A guerra dos mouros tenhamos que é um bem de fazer, pois que a Santa Igreja assi o determina e nom dá lugar a fraqueza do coraçom, que faça consciencia [escrúpulos] onde aver se nom deve. E sobr'ela eu vi fazer ua questom, que per eles se dizia seer feita, em esta guisa. Diziam: por que razom fariamos contra eles peleja ou moveríamos guerra, pois soportávamos antre nós viverem judeus e outros mouros taes como eles? Ca, se todos aqueles [judeus que viviam entre nós] primeiro matássemos ou tornássemos a nossa lei, razoado lhes pareceria que os guerreássemos; mas soportar estes e matar eles [aqueles], por lhes ocupar e filhar as terras, nom pareceria justamente feito.
A qual respondo que, assim como eles per poderio temporal e deliberaçom de suas voontades contradizem nossa fé, daquela guisa perteece aos senhores contrariar ao temporal poderio e poê-los de sô [debaixo de] a obediência da Santa Igreja, em a qual ela nom os manda forçar pera filharem nossa lei, mas quer que sejam de tal guisa sogeitos que, se alguus a ela se quisessem tornar, livremente o poderem fazer, e per os outros aos cristãos nojo ou mal se nom faça [isto é: «se alguns mouros quisessem converter-se ao cristianismo, deviam poder fazê-lo livremente, sem que os seus antigos correligionários os molestassem»]; e porem mui justamente nós e todos senhores católicos lhe devemos fazer guerra pera tornar suas terras a obediencia da Santa Madre Igreja e poer em liberdade todos aqueles que a nossa fé quiserem viir que livremente o possam fazer; e os outros aos cristãos nom façom empeecimento [obstáculo].
E desque som em nosso poder, nom é razom fazer-lhes mais prema [constrangimento, opressão, violência] da que per o Santo Padre for mandado. Porque assi como cada uu dia [todos os dias] contra os desobedientes aos mandados da Santa Igreja somos chamados em ajuda de braço sagral [do braço eclesiástico], e, desque os fazemos obedecer, a ela perteece determinar o que deles se faça,- dessa guisa com muito maior rezom pera restituir as terras em que o nome de Nosso Senhor Jesu Cristo foi louvado, que per oe infiees per temporal poderio som forçosamente ocupadas, o Santo Padre muito dereitamente nos requere, e com prometimento de tantas perdoanças nos enduz pera fazermos tal guerra; da qual seer justa, persoa [pessoa] fiel, contra seu mandado, nom deve aver dúvida, com tanto que o procedimento dela seja com boa tençom e justamente feito per taes pessoas a que convenha.
E esso medês [e o mesmo podemos dizer] é das outras justas guerras, que os senhores com os do seu conselho acordam de fazer; ca em este caso aos outros do seu reino a que perteece de o em ela [na guerra] servir nom convem mais scoldrinhar [esmiuçar na consciência], mas sem embargo [livremente] podem matar, ferir e roubar, segundo per seu rei e senhor for ordenado; ca esto todo é per todos dereito determinado - que os que teem oficio de defensores o devem fazer, usando porém de piedade quanto mais poderem, com reguardo [respeito, consideração] de seu serviço, naqueles casos que per boos confessores e leterados nos for determinado; assi nos outros nom a devemos mais alargar, por seguirmos nossas voontades, do que eles aprovarem [A piedade a usar com os mouros vencidos também estava por assim dizer tabelada, não podendo dar-se largas à compaixão, para evitar abusos e demasiada familiaridade. D. Duarte em tudo segue a justa medida, evitando sobretudo as complicações sentimentais. A questão do mouro era um negócio de política e religião. Assim o considera]».

Saudosa memória de um tempo em que Portugal era governado por reis sábios.