O povo não existe

Há uns dias encontrei no «Consultor Jurídico» uma notícia com o "estranho" título Juíza liberta preso na Venezuela e acaba presa. A história é simples: Elísio Cedeño - um banqueiro venezuelano que dizem ser um dos principais apoiantes da oposição ao presidente Chavez - encontra-se em Caracas, em prisão preventiva, há dois anos e dez meses, sendo que dois anos é o limite máximo previsto na lei criminal da Venezuela para a duração da prisão preventiva. No passado dia 10 de Dezembro, uma quinta feira, a prisão foi julgada arbitrária e ordenada a libertação do banqueiro pela juíza María Lourdes Afiuni, mas ela própria acabou presa, nesse mesmo dia, e viu a sua decisão revogada e as gravações da audiência confiscadas, no dia 13 seguinte, um domingo. Encontrei, depois, uma referência ao caso no «El País» e ainda no Serviço de Notícias das Nações Unidas, através do qual fiquei a saber que o assunto era seguido por «three independent United Nations human rights experts» que, «decrying what they termed “a blow by President Hugo Chávez to the independence of judges and lawyers in the country,” today called for the immediate release of a Venezuelan judge arrested after ordering the conditional release of a prisoner held for almost three years without trial.»[ cfr. aqui].
Li, ainda, que o presidente Chavez terá exigido a punição exemplar da juíza, o que terá motivado a resposta que encontrei aqui, e que passo a transcrever:
«Diante do constante abuso e das infâmias cometidas pelo Ministério Público, divulgando por diversos meios de comunicação versão totalmente distorcida dos acontecimentos ocorridos no dia 10 de dezembro de 2009 - versão pela qual tentam convencer a opinião pública de que estaria eu sujeita à Comissão de Ilícitos Penais pela manipulação de atas em expediente no qual simplesmente se substituiu a privação de liberdade no ato de deferimento da audiência preliminar por ausência do Ministério Público por medida que, fundamentada simplesmente em normas constitucionais, é de obrigatório cumprimento a favor de um réu, independentemente de inocência ou culpa quanto aos atos a ele imputados, posto não ser aquela a fase processual para determiná-la. De acordo com o artigo 264 do Código Orgânico de Processo Penal (COPP) e o evidente adiamento do processo de que é alvo fez do réu merecedor de pleno direito da medida como qualquer outro indiciado, sem distinção possível.
Senti necessidade de escrever esta carta para esclarecer a minha família, a meus entes queridos, à opinião pública e até mesmo ao Presidente desta República, que decisões similares à que produzi em 10 de dezembro se realizam todos os dias em vários tribunais do país. A presença das partes na audiência preliminar não é exigida oficialmente, uma vez que a sessão é transcrita e analisada por um juiz. Neste caso específico, 278 peças foram revistas em sua totalidade. Condutas menos rígidas podem ser solicitadas em qualquer nível e estado do processo, o que garante ao juiz do caso exercer as medidas que considere adequadas. No caso contrário, quando é o réu que não comparece à audiência agendada pelo juiz, o representante do Ministério Público tem poderes para revogar a decisão da liberdade condicional.
Por outro lado, a afirmação de que o Ministério Público garante a minha segurança e o meu direito à vida é absolutamente irresponsável. É inconcebível que o órgão se comprometa com a segurança de um funcionário da Justiça preso no mesmo centro penitenciário de pessoas que ele mesmo condenou. A declaração do Ministério Público é ultrajante e coloca em risco todas as pessoas que se encontram nesta situação. Isto tudo demonstra as deficiências destas instituições, que obrigam seus funcionários a trabalhar em situações limite, com prejuízo dos processados, que ficam sem nenhuma sentença final, sendo que segundo a Constituição, todos são inocentes até que se prove o contrário. É por estes motivos que faço um apelo aos órgãos públicos responsáveis para que atentem ao sistema penitenciário nacional, exigindo medidas que promovam as melhorias necessárias..
Após quinze dias ilegalmente privada de minha liberdade, tive oportunidade de conhecer diversas pessoas submetidas a processos penais nos quais se observa um rude, brutal e injustificado adiamento processual que não prevê as medidas preventivas de liberdade, transformando a espera em condenações prévias, com a cumplicidade do Ministério Público e sua insuficiência de provas convincentes. A certeza de que não existem pressupostos para a condenação requerida pela promotoria obstrui o exercício do direito de defesa e coloca em questão o princípio de igualdade das partes.
Tudo isso produz um profundo desespero àqueles que aguardam uma sentença para sair do inferno em que vivem. Estas pessoas, muitas vezes, acabam por admitir culpa, mesmo que as provas tenham sido obtidas ilegalmente ou sejam insuficientes, tornando-se coniventes por omissão com tais violações constitucionais.
Estas vivências fortalecem a minha convicção de que o ato judicial que sofri, que o Ministério Público, com a cumplicidade de alguns membros do Judiciário, alega tratar-se de 'ato ilícito', serve para alertar todos os encarregados de promover a justiça: a polícia investigativa e os membros do 'poder moral', que fizeram o juramento de respeitar a Constituição e fazer cumprir as leis. As festas de final de ano são propícias para reflexão e adoção de medidas corretivas e não para a aceitação de atos que vão contra os direitos humanos.
Toda esta experiência infeliz, digo sem ressentimentos, me fez perceber o sistema de administração da justiça do ponto de vista do acusado, ponto este que não poderia ter sido tão nítido se não estivesse nesta situação.
De todo o coração eu espero que este sofrimento, o sacrifício e a injustiça sofridos pela minha família, amigos e por mim mesma não sejam em vão e não sejam esquecidos. Reiterando a cada um dos cidadãos deste belo país que existem muitas pessoas com coragem, vontade e competência para mudar o nosso mundo, aqui e agora, com coragem, que é a ferramenta que nos move para criar, modificar e construir o país que merecemos.
Nossa resposta não deve ser feita de palavras ou idéias, mas sim de uma conduta e uma ação enfática, assumindo a responsabilidade de encontrar a resposta correta e cumprir as tarefas que a vida atribui a cada indivíduo.
Boas festas a todos!
Maria de Lourdes Afiuni»
Tanto quanto me parece, a juíza continua detida.

Este caso fez-me lembrar o que li neste post, que encontrei no blog «Devenire», e ao qual fui «roubar» o título, esperando que o meu Colega Sérgio Catarino não leve a mal o abuso. De facto, e tal como ele aí afirma, o ideal é viver num país onde se é cidadão, porque ser cidadão é muito melhor que ser do povo, e nunca é demais repeti-lo.

Manifesto de Álvaro de Campos

Ora porra!
Nem o rei chegou, nem o Afonso Costa morreu quando caiu do
carro abaixo!
E ficou tudo na mesma, tendo a mais só os alemães a menos...
E para isto se fundou Portugal!

27-6-1916
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 20 [Arquivo Pessoa]

«Circo de feras», aí vem outro ano!

São uns rapazes um bocadinho mais velhos que eu, meia dúzia de anos, apenas. Começaram a tocar nos tempos em que a diferença de idades entre nós tinha alguma importância. Hoje já não tem. Subi, algumas vezes, com eles, no mesmo elevador, os andares de um certo prédio que fica na Rodrigo da Fonseca, eu na minha descaracterizada fardamenta profissional, eles nas habituais gangas e t-shirts pretas. Ficou-me a imagem de uns rapazes amáveis e discretos, de trato simples, gentis, o oposto da ideia que os «Xutos e Pontapés» - o nome do grupo - sugerem. Se já apreciava a música, depois de me cruzar com eles a simpatia passou a incluir as suas pessoas. Li aqui que o Zé Pedro, o guitarrista, está muito doente. Lembrei-me, imediatamente, do António Sérgio, que este ano nos deixou, por ter sido nos programas dele que ouvi esta música pela primeira vez. A horas de ir virar mais uma folha do calendário, aqui deixo uma canção que já é um hino, com votos de rápidas melhoras para o Zé Pedro, e de um Óptimo Ano para todos.


Cameron, Pandora e a caixa de «aliens»

O que antes era uma estrela, e se desintegrou numa enorme bola de fogo, está hoje presente em tudo o que existe, no ar que respiramos, na água que bebemos, nas plantas e animais que comemos, nos tecidos que vestimos, no próprio corpo em que existimos, foi o que ouvi, hoje, num daqueles programas do canal «National Geographic» que,  em doses inteligíveis, servem aos leigos, como eu, vagos conhecimentos sobre ciências fundamentais. Em suma, toda a matéria que existe, já existiu sob outra forma, e assumirá uma nova forma, quando desaparecermos, o Universo mais não é que uma enorme máquina recicladora, em permanente movimento, os seres humanos uma parte ínfima do todo.
Vem isto a propósito de ontem à noite a minha filha mais nova me ter convencido a ir até a um centro comercial da periferia de Lisboa para assistir à sessão da meia noite do «blockbuster» deste Natal, Avatar, o último filme do realizador James Cameron. Chegámos uma hora antes do início,  bilhetes disponíveis apenas na primeira fila. Antecipei três intermináveis horas a olhar um ecrã grande demais,  uma dor no pescoço, uma sala cheia de gente barulhenta, a comer pipocas, emporcalhando o chão e os assentos, soltando comentários alarves, a despropósito. Mas ser mãe exige alguns sacrifícios, e depois de resmungar um pouco, acabei por me conformar com a minha sorte. Fiquei. Descobri que um filme em 3D deve ser visto mais próximo do ecrã e por isso não lamentei os lugares. E constatei que,  neste caso, nem se dá conta que o filme dura três horas. No mais, foi tal e qual como antecipei, mas ainda assim, não lamento a decisão. Explico porquê.
Dizem que Cameron é «half scientist, half artist»,  «um visionário que, de cada vez que filma, expande as fronteiras do que a tecnologia permite» e que «o que filmou, na realidade, é a história de uma viagem iniciática numa outra cultura dobrada de redenção e redescoberta». Talvez seja como dizem.  O que eu vi, no entanto, foi a cena de caça do «The Last oh the Mohicans» filmada de uma outra maneira, variantes do enredo dos livros «Dragonriders of Pern» da Anne McCaffrey, à mistura com costumes e ritos das tribos índias das duas América. Reminiscências de Camelot e de Lancelot do Lago. Tudo isto e mais ainda: máquinas e robots inspirados nos clássicos «Star Wars», muitas delas  protótipos melhorados das actualmente em uso por organismos como a Nasa, outras pelas forças americanas nos cenários de guerra, e que o próprio Cameron já filmou, noutros filmes, como o «Aliens», de 1986. Registei, porém, uma significativa diferença: no «Aliens», protagonizado por Sigourney Weaver, no papel da tenente Ripley,  os extraterrestes eram uma ameaça mortal, a sua destruição um imperativo inultrapassável. Vinte e três anos depois, Cameron volta a filmar Weaver, recorrendo aos mesmos antigos arquétipos,  mas para que esta nos transmita a mensagem oposta, ou seja, que, afinal, o futuro estará em Pandora, e na sua caixa de «aliens». Estranho. E mais estranho ainda constatar que a mole humana que se entusiasma com a fantasia tecnológica sobre o maravilhoso que só pode ser encontrado numa plena comunhão com a natureza, na qual avatares de tranças, semelhantes a portas USB, se conectam, de uma forma para-umbilical, a todos os seres vivos daquele planeta, é precisamente a mesma que vive enfiada entre quatro paredes e tem de recreação a ideia de que tal equivale a enfiar-se numa sala às escuras, a comer pipocas e a assistir às aventuras de seres virtuais num mundo virtual, depois de uma volta ou duas pelos corredores do consumo. Equilíbrio nas escolhas, moderação no uso dos recursos disponíveis, respeito pelos outros, quer pertençam ou não à nossa espécie, são conceitos que, a meu ver, não fazem parte das preocupações da pequena multidão que estava comigo naquela sala. Se Cameron é, como dizem, o «half scientist» visionário da indústria do cinema, e se «Avatar» é a imagem aproximada do futuro que nos espera, ao pensar naquela mole resta-me a consolação de saber que na lógica maior do Universo, o primeiro princípio é o da reciclagem de toda a matéria. Afinal, e como em tempos me ensinaram, «nada se perde, nada se cria, tudo se transforma» [Lavoisier].