Sociedades em liquidação?
Ao que parece, o «Instituto dos Registos e Notariado liquidou por via administrativa 37 370 empresas no ano passado e só 11 159 foram extintas pelos donos» (cfr. aqui ). Lembro-me que quando comecei a advogar, há mais de duas décadas, constituir uma sociedade não era fácil, mas dissolvê-la era um trabalho capaz de desmoralizar o mais paciente dos indivíduos. Essa, a meu ver, a principal explicação para as matrículas das sociedades sem actividade permanecerem nos registos décadas a fio. Em 2006, num louvável arroubo de desburocratização, o governo, através do Dec. Lei 76-A/2006, decidiu alterar a situação e, para tanto, introduziu no Código de Procedimento e Processo Tributário uma regra com o seguinte teor: «Independentemente do procedimento contra-ordenacional a que haja lugar, em caso de sociedades, cooperativas e estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada cuja declaração de rendimentos evidencie não desenvolverem actividade efectiva por um período de dois anos consecutivos, a administração tributária comunica tal facto à conservatória de registo competente, para efeitos de instauração dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação da entidade, no prazo de 30 dias posteriores à apresentação daquela declaração» (cfr.art.º 83.º). Espero que os números agora divulgados sejam apenas a consequência da limpeza de registos que se encontravam desfasados da realidade há décadas porque, a não ser assim, então nem sei bem o que pensar disto...
Vejam esta prosperidade!
“Eu percebo a inquietação das pessoas. É muito difícil manter um mentiroso como primeiro-ministro mas a situação do País impõe-o”. A afirmação é do professor Marcelo Rebelo de Sousa, ouvi-a aqui. Não consegui evitar que me viesse à memória outro político, incompatibilizado com este mesmo professor por causa de uma certa vichyssoise. Neste país há sempre uma coincidência irónica, a ligar tudo. O que é que se pode escrever sobre Portugal e os portugueses que não tenha sido já escrito? Vou à procura de algo menos óbvio, de preferencia da autoria de um estrangeiro, e escolho um texto, de Miguel de Unamuno, datado de Novembro de 1908: «Esta tarde, uma vez mais em Portugal, complava eu o formoso monumento a Eça de Queirós. A grave inspiração de Teixeira Lopes conseguiu dar uma expressão muito íntima ao rosto do terrível psicólogo, do homem implacável para com as fraquezas da sua terra./Aquele enfastiado, aquele céptico, inclina-se para contemplar com um olhar esquadrinhador a figura da Verdade, sobre cuja "nudez forte" quis lançar "o manto diáfano da fantasia". (A frase gravada aos pés do monumento.) No entanto, a força da nudez parece quebrar e desfazer o manto da fantasia. Aqui não há fantasia nem sequer para cobrir a verdade.»[ in «Por Terras de Portugal e Espanha - Um povo suicida», Nova Vega, p.69]. Recordo que o monumento que Unamuno refere, no qual a Verdade está nua, foi inaugurado cinco anos antes, em 1903, e no blogue O Carmo e a Trindade encontro a notícia da Illustração Portugueza sobre a inauguração, que termina assim: «Eça de Queiroz ficou-se, olhado pela Verdade, no seu manto transparente, ali a meio da rua, como a esfurancar as almas para as trasladar ao livro ironico, de face arrepanhada, esperando a sua primeira noite de gloria na praça publica, ali no largo do Quintella, onde por deshoras vagueiam vultos suspeitos e onde chegam os palavrões dos cocheiros, por onde passam os Basilios e os Reynaldos, após as perfídias, por onde passam os Amaros com os homens conhecedores da Historia e da Politíca, condemnando a revolta./Hão de parar por vezes em frente do monumento e um senhor de Ribamar exclamará: - Vejam esta prosperidade!/Lá em cima param as tipoias, passam lestos os americanos, inglezas de bandós lisos galgam a escada da Arcada de Londres, e de cima, do Camões, vem o zumbir da turba que procura pão, surgindo dos bairros do crime e do vicío./Todos os dias, mulhersinhas magrisellas, cahidas, de peitos achatados, tossicando, olheirentas, com crianças pela mão, uns petizes famelicos, de olhos pisados, hão de passar diante da estatua para a Assistencia Nacional./O senhor conde de Ribamar ha de repisar: - Vejam que prosperidade! .../ Eça de Queiroz, como outr'ora o João da Ega, assestando o monoculo, dirá ao vel-os buscando salvação: - Já não merece a pena correr na vida! .../ Ali ficará para sempre o supremo artista, vendo a obra forte de verdade nas misérias da rua, sob o manto diaphano das propseridades, que são a phantasia; ali ficará ironico e critico como em vida./E um dia o conselheiro Accacio ha de escrever o seu panegyrico, com a mira na gran cruz de S. Thiago, e quem sabe se com a ambição justa de uma cadeira na Academia. [Rocha Martins, em Chronica, na Illustração Portugueza (Nov. de 1903)]».
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