Até sempre, meu General

Há quase um ano atrás, a Advogada e Formadora Teresa Alves de Azevedo traçou aqui um retrato fiel do Advogado e Formador José Carlos Mira, "tombado em combate" no dia 29 de Novembro de 2005.

Nestes tempos das "reformas de Bolonha" e dos "troncos comuns", tenho-me lembrado muitas vezes do meu Querido General, que conheci ainda era estagiária, e em particular de um conselho que uma vez deu a uma novel patrona, sua antiga formanda, que o procurou, via CFO, buscando orientação.

Escreveu o Dr. Mira:

Se é a primeira vez que é "patrona" permita-me, em termos gerais dizer que lhe caberá transmitir ao seu estagiário os conhecimentos que adquiriu no exercício da profissão.
Mas, se me permite, não fique por aí: veja no estagiário aquilo que a Colega já foi. Tente recordar-se dos seus "medos", das suas "angústias", dos problemas que teve, das dificuldades que sentiu no seu tempo de estagiária.
Veja no estagiário um amigo mais novo que precisa da sua ajuda. Tenha o estagiário como um "compagnon de route" com o qual compartilha as suas próprias dificuldades, as suas vitórias e também as suas derrotas.
Digo-lhe mais, veja no estagiário alguém com quem nós também aprendemos. Pessoalmente assumo que o pouco "penal" e "processo penal" que sei o devo aos meus estagiários por compartilhar as vivências profissionais deles.
Tenha com o seu estagiário uma relação de "ensino/aprendizagem" mas permita-me que sugira que a "tempere" com uma relação "de afecto".


Estou certa que ponderou todos estes aspectos quando, por volta do ano de 2002, decidiu convidar a Dra Teresa Alves de Azevedo para integrar a equipa de formadores de Prática Processual Civil.

A este propósito, também no CFO, escreveu:

Há coisas que devem ser ditas, e esta é uma delas.
Ainda não vos disse porque é que "requisitei" a Sra Dra TAA para o " meu grupo" de formação.
Aqui há pouco mais de dois anos passei a encontrar com impressionante regularidade uma "visitante" que aqui aparecia a esclarecer, com assinalável acerto e ponderação, e notável "amor à camisola", que assinava TAA e que o remetente me dizia chamar-se "Teresa Alves Azevedo"
Confesso que na altura "não liguei o nome à pessoa" e foi ela que "se apresentou" recordando-me ter litigado "contra mim" uns anos antes e recordando-me o caso em questão.
Devo dizer que, por razões que aqui não relevam, o caso em questão foi, inquestionavelmente, o de maior melindre deontológico que tive em toda a vida.
A Sra Dra TAA só teve intervenção na audiência de julgamento, razão pela qual não recordei de imediato o nome dela.
Devo dizer-vos, porém, que me impressionou a postura deontológica dela em toda a sua intervenção, apesar de ser uma jovem ( e ainda é ! ) Advogada com todo o "ar" de ter acabado o estágio há pouco tempo.
Foi um processo que decorreu num nível de intervenção deontológica de tal forma elevado que o próprio senhor juiz do processo fez questão de salientar este aspecto em várias passagens da sentença que proferiu. Nunca me tinha acontecido antes, nem voltou a acontecer depois.
Lembra-se, Teresa ?
Então ali estava alguém que manifestamente sabia muito de processo civil; manifestava total disponibilidade para ajudar quem precisava; explicava as coisas de maneira que até um menino de 5 aninhos percebia, e ainda por cima tinha revelado ser de um rigor deontológico marcante e eu não ia aproveitar?
É exactamente por isso que jamais pediria para dar formação aos colegas mais novos a alguém que entenda que um estagiário que copiou por uma minuta tem "todo o direito" de afirmar que não copiou!

E, digo eu, ainda bem que a convidou.
Mais que qualquer outro formador, a TAA ficou a segurar o "barco" dos nossos estagiários desde que ele partiu. Pedi-lhe, agora, para fazer um "balanço" deste ano "pós-Mira" e aqui vos deixo o que ela escreveu:

Está prestes a fazer um ano que faleceu o Senhor Dr. José Carlos Mira.
Há momentos em que parece que foi ontem que falei com ele; e em muitas manhãs quase que espero encontrá-lo encostado ao balcão do Centro de Estágio.
Não se passa um dia em que não me lembre dele, e lembro-me sempre com um misto de alegria por o ter conhecido e de tristeza por ele já não estar entre nós.
Ao longo deste ano receei várias vezes que o legado dele se perdesse. Mas também várias vezes me apercebi de que o legado que nos deixou não morrerá enquanto existir alguém que se lembre dele e do que nos ensinou.
Há um “antes” e um “depois” dele, que nos entra pelos olhos dentro quando abrimos o Fórum “Sala J.C. Mira” do CFO-CDL: as alterações introduzidas levaram a que o Fórum que está activo seja posterior ao falecimento dele, pelo que só se encontram as mensagens dele nos vários Arquivos, milhares de mensagens deixadas entre 2002 e 2005, a última das quais na hora anterior ao falecimento.
O Dr. José Carlos Mira ensinou processo civil aos estagiários, mas foi também ele quem criou o espírito de entreajuda no CFO.
Foi ele quem levou a que os estagiários (e não só) se juntassem “à mesa do Bar” do CFO de Lisboa, sabendo que do outro lado estava sempre alguém pronto a ajudar. E vinham de todos os cantos do mundo, até dos fiordes noruegueses.
Foi ele quem ensinou, pelo exemplo, que quem sabe deve ajudar aqueles que sabem menos. E ensinou que quando se sabe um pouco mais se deve passar a ajudar.
Ele ensinou a ajudar desinteressadamente, a receber um agradecimento com a alegria de ter ajudado…
Este ano sem ele tem custado muito a viver.
Mas quase todos os dias venho do CFO de alma lavada: encontrei alguém que anteontem pouco sabia, que ontem tinha dúvidas e que hoje ajudou alguém.
Ao longo deste ano em que temos tentado manter o espírito dele, ali, naquela sala que é dele, fico quase em lágrimas quando me apercebo de como a “rapaziada” dele cresceu e se continua a lembrar dele.
Verificam-se os progressos de dia para dia, à medida que os estagiários vão avançando no desempenho desta actividade que é a nossa, de ajudados passam a ajudar, e de curso em curso de estágio se vai renovando o legado deixado pelo Dr. Mira: Luís Miguel Jesus, Marta Susana Carvalho, Salomé Jardim, Tiago Castelo, Luís Mesquita Brito, Filipa de Figueiroa, Nelson Páscoa Silva, Bernardo Pinto Coelho, José Gabriel Pinto Coelho, José Barradas, Henrique Fialho, Marta Montez, Susana Valério, Susana Caço Dias, Rosário L. Afonso, Isabel Cabral Gomes, João Carlos Ludovico da Costa, Fátima Calado Pedro, Munir Valimamade, Miriam Soares, Carlos Marques Dias, Fernando Manuel Ramos, Luís Mesquita Martins, Marco Garrinhas, Alexandra Sécio, Marco Alexandre Saias …
O legado dele está bem vivo e a chama continua acesa.
Teresa Alves de Azevedo

Faz o que eu digo...

Diz o art.º 120.º da Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, mais conhecida por EOA, que o processo disciplinar, no qual seja visado um advogado, tem natureza secreta até ao despacho de acusação, sem prejuízo de o relator poder autorizar a consulta do mesmo pelo interessado ou pelo arguido, assim como determinar que as estes sejam facultadas cópias de peças processuais, para que se pronunciem sobre as mesmas, quando tal seja do interesse da instrução. Mediante requerimento que indique o fim a que se destina, pode ainda ser autorizada a passagem de certidão para defesa dos legítimos interesses dos requerentes.

Estabelece, ainda, o mesmo artigo, que "o relator pode autorizar a informação pública de pendência de processo disciplinar contra advogado determinado, sem identificar os factos e a fase processual". O arguido e o interessado, quando advogado, que não respeitem a natureza secreta do processo incorrem em responsabilidade disciplinar.

A lei nada refere sobre a possibilidade da natureza secreta do processo não ser respeitada pelos membros do Conselho de Deontologia competente, mas a ser verdade o que li aqui parece-me que devia...

Hermes ou Atena? Continuação...

Nos últimos tempos tenho encontrado nos jornais vários textos, de vários autores, quase todos advogados, defendendo a ideia de que a advocacia já não é como antes, e que os advogados de hoje estariam melhor representados por uma "agência de regulação e fiscalização independente" ou por um sindicato, do que pela sua provecta Ordem, velha de oitenta anos.

Começou com este texto, que suscitou esta única resposta, a propósito dos quais já escrevi isto.

Continuou, depois, com este outro e ainda este , publicados imediatamente antes da realização da Assembleia Geral Extraordinária dos Advogados, convocada neste contexto, e na qual se aprovou isto e pouco mais.

Na passada quarta feira da semana que agora finda, foi publicado mais um, na "Lex" do Jornal de Negócios, desta vez sob a forma de entrevista ao Dr. Macedo Vitorino (na foto), que peremptóriamente afirma que a Ordem dos Advogados "é um vazio" e que "devia acabar", aproveitando ainda para criticar os membros da Ordem, por "irem à televisão autopromover-se, (...) (e dar) entrevistas sobre casos dos quais eles não são advogados, com a desculpa de que são da OA".
Nem de propósito, no dia em que foi publicada esta entrevista, os advogados ficaram a saber isto.

Tenho de reconhecer, no entanto, que a ideia de acabar com a Ordem não é recente.

Recordo a indignação do Bastonário Pires de Lima, a propósito de umas certas propostas de lei que visavam retirar poderes às ordens profissionais.

Mais tarde, na altura em que se iniciaram os trabalhos de revisão do velho Estatuto da OA, foi publicado este texto na Revista, que mereceu do Bastonário José Miguel Júdice o seguinte comentário: "Estão sempre em confronto duas concepções de advocacia : uma mais anglo-saxónica, em que a organização dos advogados é uma instituição da sociedade civil, sem os direitos nem os deveres decorrentes de funções públicas; outra mais continental em que se insere a tradição da nossa Ordem. O texto do Dr. Rangel exprime uma concepção perfeitamente legítima e totalmente liberal da profissão : para vos dar um exemplo, a Law Society de Inglaterra e Gales defende que é admissível que empresas abram em supermercados gabinetes de consulta jurídica. Sou um reformista e fui muito atacado - creio que injustamente - de querer destruir a Profissão. A Advocacia em Inglaterra é muito poderosa, mas não se iludam que não tem os valores que nos caracterizam. O meu modelo não é o inglês e não fui eleito para o concretizar.(...) José Miguel Júdice, 2002-11-21 (cfr. aqui ).

Que eu saiba, e até ver, foi o último Bastonário a proferir tal afirmação, e é manifesto que há quem esteja a aproveitar isso.

A bem da profissão e dos advogados, só posso desejar que o próximo ainda chegue a tempo...