Da improvável relação entre véus e calças de ganga

No programa «Eixo do mal» que ontem passou na Sic Notícias, Clara Ferreira Alves e Daniel Oliveira comentavam a questão de proibir ou não o uso do véu (niqab) às mulheres islâmicas, que neste momento se discute em França, Itália e na Dinamarca. Afirmava Daniel Oliveira que caso a proibição vá avante, as muçulmanas que agora não usam o niqab  - ou seja, a larga maioria das residentes na Europa - poderão vir a adoptá-lo, como manifestação política de protesto. Contrapunha Clara Ferreira Alves que o uso do niqab não passa de uma «imposição machista» dos homens muçulmanos, pelo que os Estados europeus têm o dever de defender estas mulheres de tais imposições. Não vi o programa até ao fim, não tive paciência. Ainda assim o que vi foi suficiente para me ter lembrado dele hoje, enquanto jantava, assistindo a um documentário sobre as calças de ganga. Aí se recordava que antes da II guerra mundial a generalidade das mulheres americanas não usava calças, menos ainda calças de ganga. O hábito só foi introduzido quando, em virtude do esforço de guerra, as mulheres substituiram os homens nas fábricas e, por conseguinte, adoptaram o mesmo vestuário. E enquanto via isto lembrei-me também de um outro documentário, que passou na televisão há uns tempos, sobre Marrocos, o desenvolvimento económico dos países muçulmanos e a relevância que, para o efeito, tem a entrada das mulheres no mercado de trabalho. E reflectindo sobre tudo isto ocorreu-me que a resposta para a questão, tão vivamente debatida entre os dois comentadores que acima refiro, é, simultâneamente, bem mais prosaica e complicada do que os comentários que ouvi faziam parecer. Prosaica na medida em que, analisando o problema com este enquadramento, a saída para os legisladores europeus, ao nível do princípio a aplicar, parece-me óbvia: o vestuário tem de ser o mais adequado à actividade desenvolvida, independemente do sexo e religião de quem a exerce. As simple as that...  Complicada porque, a meu ver, o princípio devia ser óbvio para a generalidade dos «comentadores profissionais» que pontificam nas nossas televisões e, pelos vistos, não é. Por isso, o meu interesse pelo debate teria, certamente, sido diferente se em vez deste assunto os comentadores se tivessem debruçado sobre a questão subjacente à notícia do Público que encontrei aqui: deve ou não ser permitido aos pais vedar aos filhos o acesso a determinados conhecimentos, e o que é que o Estado pode/deve fazer relativamente a isso? É que neste caso, o problema não é entre um «nós e os outros» mas entre um «nós e nós», o que sempre complica as coisas...

4 comentários:

analima disse...

Interessante esta sua reflexão. Relativamente ao uso do vestuário associado às questões religiosas não sei se bastará esperar que a facilidade de movimentos no local de trabalho leve as mulheres a preferir vestir roupa diferente. Em muitos países islâmicos, em que a sua significativa presença no mercado de trabalho se verifica, continuam a usar os trajes que para umas serão uma escolha e para outras uma imposição. E é aqui que o problema se coloca.
Também em relação à educação das crianças se colocam questões interessantes. Por um lado é bom os pais poderem optar por educar os seus filhos de modo diferente. O ensino de massas deixa de fora muitas hipóteses que são igualmente válidas. Filosofias de vida diferentes, questões de fé muito próprias podem ficar diluídas no meio de uma escola que, em países com um estado laico, tem obrigatoriamente de proporcionar uma educação abrangente e o menos dirigida possível para formas de estar na vida particulares. Mas confesso que fico um pouco preocupada se motivos religiosos como estes impedem também as crianças de ter essa visão mais global da realidade. É óbvio que quando crescem e adquirem autonomia poderão fazer opções diferentes daquelas para as quais foram dirigidas. Mas, muitas vezes, a socialização foi tão forte que não lhes permite pensar por si próprias.
Enfim tudo isto é discutível porque também aqui a minha visão do mundo me está a influenciar. E, apesar de acreditar que a minha é melhor que outras, também se poderá discutir se assim será.

Nicolina Cabrita disse...

É verdade que em muitos países islâmicos as mulheres já estão no mercado de trabalho, como por exemplo na Indonésia ou até na Turquia. Mas parece-me que a realidade das mulheres desses países, apesar de tudo, está mais próxima da realidade das europeias que das árabes, até no uso do véu. A ideia que tenho sobre a religião muçulmana é que, tradicionalmente, era mais tolerante que a católica relativamente à cultura do povo que a adopta, e por isso se expandiu mais facilmente.
De qualquer forma, quando escrevi o post a minha atenção estava mais centrada no problema que hoje em dia os legisladores da França, Dinamarca e Itália enfrentam, e na melhor forma de o ultrapassarem. Talvez não tenha sido suficientemente clara e valha a pena voltar à questão. Obrigada pela chamada de atenção.

Joana Roque Lino disse...

Olá, Dra. Nicolina,
Gostei de ler o seu texto. A mim parece-me que o bom senso resolveria muitas situações como as que refere, sobretudo tendo por contraponto esse direito fundamental que é a liberdade pessoal de todos e de cada um de nós. Sempre que se crê poder sacrificar-se a liberdade em nome de acontecimentos contemporâneos menos felizes, os resultados que a história mundial nos foi revelando não é dos maiores feitos da humanidade...
Um abraço.
JRL

Nicolina Cabrita disse...

Viva, minha Colega!
De facto, bom senso e bom gosto são virtudes antigas que nos dias de hoje não abundam... :-)
Gostei de a ler por aqui.
Um abraço