Singularidades nuas - 2

Na «Introdução» do seu livro «Esta Cidade!» escreveu Irene Lisboa: «O romance e a novela têm os seus limites, e classe. Isto é, o romance classifica-se, toma o nome de romance quando a sua anedota apresenta um determinado desenvolvimento; um âmbito e uma compilação, uma ordenação e um desfecho que o aparentam com a já longa série de romances que a literatura universal comporta. E a novela tal qual! Uma novela tem sempre parentesco literário com outra: há uma medida no seu jogo ideal (efabulação se quiserem) e nos seus passos que a incluem no número de obras da mesma espécie. Ora eu não pretendi desta vez cultivar a novela nem o romance. Esquivei-me ao formalismo da sua composição e subordinei-me ao da observação desinteressada e a uns laivos de crítica. Assim, contrariei a básica orientação romanesca: armar e tornar lógico para despertar o interesse; embelezar ou afeiar para impressionar.(...)» Uns dias depois de ter encalhado nesta singularidade, eis que finalmente descubro, pela mão da mesma escritora, uma justificação simples e lógica para a circunstância de há uns anos a esta parte ler cada vez menos romances e, muitas vezes, desistir da leitura a meio, por me parecer estar a ler o já lido, escrito de maneira diferente, o que é cansativo. É que na vida vivida há pouca ou até mesmo nenhuma lógica e a capacidade que a realidade tem de nos impressionar vai muito além do contraste entre o feio e o belo. Para se chegar a esta conclusão basta ter vivido, como eu, um número de anos suficiente para olhar para o passado com ângulo. Aqui fica um exemplo: em Jette [subúrbio de Bruxelas] foram ontem encontrados, no quarto da casa onde viviam, os esqueletos de mãe e filho. O «(...) correio e os alimentos encontrados dentro da casa (...) permitiram determinar que a mãe e o filho morreram em 2004. Desde então, as persianas da casa permaneceram fechadas. Os mesmos jornais indicaram que uma vizinha tentou por diversas vezes alertar as autoridades para uma eventual situação de morte ou de desaparecimento, mas ninguém entrou na casa. A descoberta foi feita finalmente durante uma visita de um juiz, no âmbito de um processo de sucessão relativo à morte do pai desta família.» [cfr. aqui e ainda aqui]. Que romancista é capaz de encontrar uma lógica para esta anedota?

3 comentários:

teresa disse...

Já é lugar-comum afirmarmos que, por vezes, a realidade ultrapassa a ficção, acontece que quem se encontra atento à realidade envolvente acaba por constatar isso mesmo e os links para a notícia de jornal presentes no post acabam, uma vez mais, por confirmar a ideia. É talvez por isso que (opinião pessoal) um bom texto literário prende pela forma como são (re)criadas as palavras ou ainda pelo modo como as emoções do leitor são modeladas, sendo estes aspectos mais 'fortes' em literatura do que o próprio enredo, sendo aqui que as primárias divisões entre poesia e prosa se esbatem, a excepção irá talvez para algum imaginário de nós mais distante, tal como sucede com alguns escritores da América latina ou ainda alguns pequenos universos apresentados por escritores como Steinbeck ou o japonês Yukio Mishima. Fantástico este texto de Irene Lisboa, obrigada pela partilha.

Nicolina Cabrita disse...

Tem toda a razão, dizer que a realidade ultrapassa a ficção é um lugar comum, ou seja, uma «verdade» que se aceita à priori, sem discutir os fundamentos, e por isso o texto da Irene Lisboa me ficou na cabeça.
Igualmente extraordinárias são as crónicas que constituem o livro «Esta Cidade!». Sem querer diminui-lo [bem pelo contrário], arrisco-me a afirmar que, na sua estrutura, as crónicas são muito semelhantes às redacções das crianças de 10 anos, sem preocupações com o «enredo», sem imposições decorrentes do que é tido por «lógico». Nas crónicas, a Irene Lisboa narra a realidade como a vê: fragmentada (fragmentária?) quando assim é, desconexa, muitas vezes absurda. Por isso as acho fascinantes, ou melhor dizendo, sobretudo por isso.
Obrigada pela visita e pelo comentário.

teresa disse...

Não é para agradecer, Nicolina.

A minha curiosidade leva-me com frequência a 'espreitar' quem também nos visita.

Gostei de ter conhecido este espaço (a literatura é um dos meus 'gostos') e, seguramente, virei mais vezes visitá-lo:)