Cameron, Pandora e a caixa de «aliens»

O que antes era uma estrela, e se desintegrou numa enorme bola de fogo, está hoje presente em tudo o que existe, no ar que respiramos, na água que bebemos, nas plantas e animais que comemos, nos tecidos que vestimos, no próprio corpo em que existimos, foi o que ouvi, hoje, num daqueles programas do canal «National Geographic» que,  em doses inteligíveis, servem aos leigos, como eu, vagos conhecimentos sobre ciências fundamentais. Em suma, toda a matéria que existe, já existiu sob outra forma, e assumirá uma nova forma, quando desaparecermos, o Universo mais não é que uma enorme máquina recicladora, em permanente movimento, os seres humanos uma parte ínfima do todo.
Vem isto a propósito de ontem à noite a minha filha mais nova me ter convencido a ir até a um centro comercial da periferia de Lisboa para assistir à sessão da meia noite do «blockbuster» deste Natal, Avatar, o último filme do realizador James Cameron. Chegámos uma hora antes do início,  bilhetes disponíveis apenas na primeira fila. Antecipei três intermináveis horas a olhar um ecrã grande demais,  uma dor no pescoço, uma sala cheia de gente barulhenta, a comer pipocas, emporcalhando o chão e os assentos, soltando comentários alarves, a despropósito. Mas ser mãe exige alguns sacrifícios, e depois de resmungar um pouco, acabei por me conformar com a minha sorte. Fiquei. Descobri que um filme em 3D deve ser visto mais próximo do ecrã e por isso não lamentei os lugares. E constatei que,  neste caso, nem se dá conta que o filme dura três horas. No mais, foi tal e qual como antecipei, mas ainda assim, não lamento a decisão. Explico porquê.
Dizem que Cameron é «half scientist, half artist»,  «um visionário que, de cada vez que filma, expande as fronteiras do que a tecnologia permite» e que «o que filmou, na realidade, é a história de uma viagem iniciática numa outra cultura dobrada de redenção e redescoberta». Talvez seja como dizem.  O que eu vi, no entanto, foi a cena de caça do «The Last oh the Mohicans» filmada de uma outra maneira, variantes do enredo dos livros «Dragonriders of Pern» da Anne McCaffrey, à mistura com costumes e ritos das tribos índias das duas América. Reminiscências de Camelot e de Lancelot do Lago. Tudo isto e mais ainda: máquinas e robots inspirados nos clássicos «Star Wars», muitas delas  protótipos melhorados das actualmente em uso por organismos como a Nasa, outras pelas forças americanas nos cenários de guerra, e que o próprio Cameron já filmou, noutros filmes, como o «Aliens», de 1986. Registei, porém, uma significativa diferença: no «Aliens», protagonizado por Sigourney Weaver, no papel da tenente Ripley,  os extraterrestes eram uma ameaça mortal, a sua destruição um imperativo inultrapassável. Vinte e três anos depois, Cameron volta a filmar Weaver, recorrendo aos mesmos antigos arquétipos,  mas para que esta nos transmita a mensagem oposta, ou seja, que, afinal, o futuro estará em Pandora, e na sua caixa de «aliens». Estranho. E mais estranho ainda constatar que a mole humana que se entusiasma com a fantasia tecnológica sobre o maravilhoso que só pode ser encontrado numa plena comunhão com a natureza, na qual avatares de tranças, semelhantes a portas USB, se conectam, de uma forma para-umbilical, a todos os seres vivos daquele planeta, é precisamente a mesma que vive enfiada entre quatro paredes e tem de recreação a ideia de que tal equivale a enfiar-se numa sala às escuras, a comer pipocas e a assistir às aventuras de seres virtuais num mundo virtual, depois de uma volta ou duas pelos corredores do consumo. Equilíbrio nas escolhas, moderação no uso dos recursos disponíveis, respeito pelos outros, quer pertençam ou não à nossa espécie, são conceitos que, a meu ver, não fazem parte das preocupações da pequena multidão que estava comigo naquela sala. Se Cameron é, como dizem, o «half scientist» visionário da indústria do cinema, e se «Avatar» é a imagem aproximada do futuro que nos espera, ao pensar naquela mole resta-me a consolação de saber que na lógica maior do Universo, o primeiro princípio é o da reciclagem de toda a matéria. Afinal, e como em tempos me ensinaram, «nada se perde, nada se cria, tudo se transforma» [Lavoisier].

6 comentários:

analima disse...

Confesso que não estou muito entusiasmada com a perspectiva de ver este filme. Mas gostei bastante desta sua análise.

Nicolina Cabrita disse...

Compreendo-a. Eu também não estava, mas se tem filhos com vontade de ir julgo que vale a pena acompanhá-los, mais que não seja para descodificar todas as referências que o filme contém. A minha filha gostou que eu fizesse isso e para mim foi bom alargar-lhe as perspectivas de análise.
Obrigada pela sua visita. Aproveito para lhe desejar um Bom Ano!

Maria Josefa Paias disse...

Como não sou grande cinéfila mas amante da letra de forma, foi um deleite ler o seu texto, Nicolina!
Quanto à parte da Natureza, e é isso que me consola, ela tudo recicla como lembrou, até a nós se for caso disso.
Se não nos cruzarmos na blogosfera entretanto, desejo-lhe um bom 2010.
Beijinho.

Nicolina Cabrita disse...

Muito obrigada, Maria Josefa :-)
Votos de um óptimo 2010 também para si.
Beijinho.

Ana Paula Sena disse...

Gostei imenso de a ler, Nicolina.

Eu ainda não vi o filme, mas também tenho que acompanhar a minha filha mais nova que quer ver, claro.
À partida, tenho algumas reservas. Depois de a ler, partilho inteiramente a relativa decepção. Afinal, que tremendo paradoxo - esse de enaltecer a simbiose com a natureza pela via tecnológica, numa sala às escuras, comendo pipocas.
A esperança está no reconfortante Lavoisier, sempre me pareceu :)

Um abraço

Nicolina Cabrita disse...

Este filme não é como o Titanic. Também tem efeitos especiais espectaculares mas vai mais além. Se decidir vê-lo acho que não vai arrepender-se.

Muito obrigada pelas suas palavras, Ana Paula. Fico feliz por saber que gostou :-)
Um abraço