Lembranças do passado

«Ao lado direito do hospital [chamado de Todos-os-Santos], do norte para o poente, está situado o templo de São Domingos e um colégio (1), de grande fama. Na frontaria oposta, passando um largo rossio a ocidente, levanta-se o terceiro monumento: edifício na verdade grandioso, digno de ser visto, pela sua arquitectura admirável, mandado erigir, à custa da nação, pelo infante Dom Pedro, filho de Dom João I. Mandou-o edificar, quando regeu o reino em nome de Dom Afonso V, seu sobrinho, com a intenção de que servisse para receber os embaixadores das nações e dos reis estrangeiros; também ali se hospedavam, por conta da nação, com todas as honras e grandezas. (2)
Continuando em linha recta até à praia, ficam à direita, em lugar mais elevado, os conventos das Carmelitas (3), dos Franciscanos (4) e da Santíssima Trindade (4), notabilíssimos pela construção magnífica e sumptuosa. Passando ao longo da Rua Nova, onde abundam os gravadores, joalheiros, ourives, douradores e casas de escambo, voltando sempre à esquerda, chega-se a outra rua chamada também Rua Nova dos mercadores, muito mais vasta do que as outras ruas da cidade, adornada, dum lado e doutro, com belos edifícios. Aqui se juntam, todos os dias, os comerciantes de quási todos os povos e partes do mundo, com extraordinário concurso de gente, por causa das facilidades que o comércio e o porto oferecem.
Indo na mesma direcção e pelo mesmo caminho para o norte, fica, à esquerda, o antigo posto fiscal, onde, há pouco, se pagavam ao rei os impostos pelas mercadorias importadas.
Em frente do posto, aparece a praça que se chama Pelourinho Velho; aqui se vêem sempre muitos homens, sentandos diante de mesas, aos quais se pode dar o nome de tabeliães ou amanuenses, embora não tenham cargo oficial. Ganham a vida deste modo: ouvindo os que a eles acodem e lhes expõem as suas intenções, escrevem folhas de papel que entregam aos requerentes, recebendo a paga conforme o assunto, de modo que sempre estão a postos para redigir cartas, mensagens amorosas, elogios, discursos, epitáfios, versos, louvores, orações fúnebres, petições, notas e coisas deste jaez que lhes pedem. Nunca vi fazer coisa semelhante noutras capitais da Europa. Por tudo isto facilmente se pode avaliar a grandeza de Lisboa e o número dos seus habitantes.»

(1) Damião de Góis escreve: collegium. Será colegiada o que ele quer dizer?
(2) Era o famoso Palácio dos Estaus, onde se encontra agora o Teatro Nacional, ao Rossio, embora não tivesse exactamente a mesma orientação que tem o actual Teatro.
(3) Mais ou menos o convento do Carmo, com as suas ruínas e Largo do Carmo, Rua do Carmo.
(4) Onde é agora  [ ou seja, em 1937 ]  a Biblioteca Nacional, Museu de Arte Contemporânea e Escola de Belas Artes, Governo Civil. Ainda se conserva o nome de Calçada de São Francisco.
(5) O convento da Trindade ruíu com o terramoto.

Damião de Góis, « Lisboa de Quinhentos - descrição de Lisboa », texto latino, tradução de Raúl Machado, Livraria Avelar Machado, 1937, p.47 a 49    

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