Hermes ou Atena? A escolha é dos Advogados

A propósito de dois artigos de opinião, publicados no DN, que encontrei aqui e aqui, apeteceu-me escrever isto:

Há quem defina o ofício de advogar como o exercício de uma especial competência para persuadir. Tudo se resumiria a isto: convencer alguém, regra geral um juiz, da razão que assiste a um cliente.

Como é sabido, os homens são “seres sociais”, pelo que a competência para persuadir é fundamental para a sua sobrevivência e, nessa medida, reverenciada desde tempos imemoriais.

Os gregos da Antiguidade Clássica associavam essa competência ao deus Hermes, um dos filhos preferidos de Zeus.

Diz o mito que Hermes iniciou a sua carreira divina roubando um rebanho de vacas, propriedade de Apolo. Não obstante a sua inteligência e engenho acabou por ser descoberto e foi levado para o Olimpo, para ser julgado, mas aí recorreu às suas especiais capacidades de persuasão e acabou por convencer Apolo a trocar as vacas por uma lira, que também inventou. A partir daí, Apolo ocupou-se em tanger a lira e Hermes ficou com as vacas.

Zeus, impressionado com a inteligência e competências de Hermes, em vez de o punir pelo roubo, nomeou-o arauto dos deuses e confiou-lhe a responsabilidade pela segurança de toda a propriedade divina, incumbindo-o de firmar contratos, fomentar o comércio e garantir a livre circulação dos viajantes, por todas as estradas deste mundo.

Por essa razão, Hermes, o mais eloquente e bem sucedido deus do Olimpo, era o invocado para protecção da propriedade, do comércio e... dos ladrões.

Embora cultores da eloquência, ao longo dos tempos e até agora nunca os advogados se afirmaram seguidores de Hermes, mas antes da sua irmã, a deusa Atena, cuja história é muito diferente.

A mãe de Atena era a Titânide Métis, deusa da Prudência, mas as histórias divergem quanto à identidade do pai. Na origem desta disputa estará a circunstância desta deusa ser associada ao culto da deusa-mãe como deusa suprema, anterior ao culto do deus-pai, que acabou por prevalecer na cultura ocidental. Subsistem, por isso, alguns mitos que revelam a existência de alguma resistência em aceitar a subalternização da deusa a um deus masculino, por via do estabelecimento da respectiva paternidade. Mas isso são outras histórias, que agora não vêm ao caso...

Aqueles que afirmam que era filha de Zeus contam que este a engoliu quando Atena ainda estava no ventre da mãe, por receio de ser destronado por ela.

Um dia, quando passeava pelas margens de um lago, Zeus foi assolado por uma violentíssima dor de cabeça e foi assistido por Prometeu (ou Hefesto, consoante as versões) que lhe abriu uma brecha no crâneo com uma cunha e um maço, através da qual Atena saíu, armada dos pés à cabeça, "lançando um grito tremendo".

Atena era, portanto, uma guerreira, mas uma guerreira sensata, sábia, prudente, justa, e por isso reverenciada não só como a deusa da guerra, mas também da Sabedoria, dos ofícios e da Justiça. 

Desde sempre os advogados se reclamam seguidores de Atena, porque sempre se entendeu que advogar não implica, apenas, saber persuadir. É preciso dominar, com igual mestria, todas as competências que permitem discernir os lugares onde a Verdade e a Razão foram encerradas pelo invejoso Zeus, para que, armadas dos pés à cabeça com os mais fortes argumentos, prevaleçam e se imponham, à imagem da deusa, irrompendo da cabeça do deus. Com efeito, a própria Atena mais não é que a personificação destes valores, sem os quais não existe Justiça, e sem Justiça, não existe Civilização.

Ora, de há uns tempos a esta parte têm-se ouvido por aí uns arautos, que se dizem percursores de um novo tempo, e que em nome da busca de mais riqueza e abundância para o “povo europeu”, propugnam a alteração do enquadramento legal da advocacia, por forma a que esta fique sujeita, apenas, às leis do mercado e da concorrência, reduzindo, muito convenientemente, este ofício a uma mera prestação de serviços.

Estes arautos, bons e fiéis seguidores do deus Hermes, estão, naturalmente, preocupados com o funcionamento do sistema que, em caso de litígio, determina quem fica com as vacas, mas, contrariamente ao que pensam, a ideia de centrar a administração da Justiça na questão da divisão da riqueza é tudo menos nova.

Há muito que é costume contar aos jovens estagiários uma velha anedota sobre um advogado, um estagiário, e uma disputa entre herdeiros por causa de uma vaca, a fim de os iniciar nos “mistérios” da Deontologia profissional.

Reza a história que estando um advogado no seu escritório, acompanhado pelo seu estagiário, foi procurado por um dos dois herdeiros de uma única vaca. O homem pretendia uma opinião sobre qual dos dois teria mais possibilidades de ficar com a vaca, e o advogado, depois de o ouvir, afiançou-lhe que a vaca era dele. Procurado, uns dias depois, pelo outro herdeiro, a cena repetiu-se. Perplexo, o estagiário perguntou ao mestre, a quem, afinal, pertencia a vaca, ao que este respondeu, prontamente: “a vaca é nossa, claro!”

Esta história não passa (ou não deve passar) de mera ficção, uma vez que são muito antigas as regras da Deontologia profissional que impedem um advogado de aconselhar ambas as partes no mesmo litígio e lhe vedam a possibilidade de se fazer pagar pelo objecto aí disputado. O que se pretende é que os estagiários entendam, muito claramente, que a Deontologia profissional dos advogados, faz, em concreto, toda a diferença, por ser aquilo que transforma os advogados, - todos, sem excepção, independentemente da forma como exercem a profissão -, em servidores da Verdade e da Razão e, por conseguinte, da nobre e poderosa deusa Atena.

Cabe à Ordem dos Advogados ser a fiel depositária e guardiã desta Deontologia, e bem assim do saber prático inerente à sua aplicação. Enquanto associação pública, julgo que tal responsabilidade é mesmo a sua primordial função.

Hoje, como sempre, em todos e cada um dos actos que pratica, cada advogado continua a ter de decidir que deus pretende servir: se Hermes, - o persuasivo deus, cuja única preocupação é a propriedade das vacas -, se Atena, - a nobre guerreira que defende a Verdade e a Razão, visando fazer Justiça -, com a certeza que o futuro da Civilização, tal como a conhecemos, disso depende.

Por isso os advogados não são - não podem ser -  “prestadores de serviços de persuasão”, comandados pela lei da oferta e da procura, preocupados tão somente em prestar um serviço eficiente, de acordo com uma lógica de mercado. Mas antes são - devem ser -  consciências livres, que vivem do exercício do seu livre arbítrio, e criam as condições que permitem a quem decide encontrar a Verdade e fazer Justiça.

Hoje, como sempre, a escolha é dos Advogados.

3 comentários:

Anónimo disse...

Atena era a deusa mais linda do Olimpo. Tinha aquilo a que agora se chamaria charme. Se calhar era deusa por isso.
Hermes era feio, de dentes cariados e sorriso de comerciante avarento. Não, decididamente prefiro Atena.

Anónimo disse...

(...) Hoje, como sempre, em todos e cada um dos actos que pratica, cada advogado continua a ter de decidir que deus pretende servir: (...)
???
Só quem se decide servente ou subserviente tem de escolher divindade para patrão ou mecenas.
Tenho por bom e correcto que um(a) Advogado(a) serve apenas a sua consciência, e nela confia para em cada momento lhe dar rumo.

Nicolina Cabrita disse...

A consciência não se serve, usa-se.
E usa-se para servir a verdade ou, em vez dela, o lucro. Retórica "à parte", essa é a escolha.
:-)