Pergunta-me V. de onde resulta a minha inabalável fé.
De onde resulta?
Resulta da confiança que tenho em mim mesmo e que tenho no povo.
O povo não existia. Enquanto ele esteve em formação, no mistério em que se gerava, longe das nossas vistas, muitas vezes a minha fé foi abalada, muitas vezes perguntei a mim mesmo se o nosso pensamento de ressuscitar esta nacionalidade não seria um sonho.
Mas ele apareceu, de um dia para o outro, adulto, e desde então não há mais razão para duvidar.
O povo existe. Logo, a nação existe.
O que o faz duvidar a si, meu caro pessimista, é que, quando V. considera a nação nunca considera o povo, que é no entanto, a sua parte principal.
V. considera as classes superiores, reconhece-as cada vez mais numa decadência lastimável, e como, no seu falso ponto de vista, as classes superiores constituem a nação, V. conclui que a nação está perdida e nada há a fazer dela.
Tudo vem de que V. desconhece o povo, tudo vem de que a sua educação aristocrática e pedante não o habilitou a conhecer, tudo vem de que V. no fundo o despreza.
Para V. o povo continua a sua tradição miserável e não tem papel a desempenhar. Não constitui o fundo social, o seu fundamento, a sua base, mas uma vasa, uma escória.
Dir-se-ia que V. é um individualista, mas não é. É apenas um entendimento afidalgado, que não reconhece a sociedade senão nas elites e para quem tudo o mais é plebe. No seu conceito, a sociedade, toda ele, só seria digna se fosse uniformemente constituída por doutores.
Não é isto?
É isto.
V. considera a sociedade e o que vê? Vê os doutores em falência, patinhando em mediocridade e em corrupção, e deixa pender a cabeça, deixa pender os braços, declara tudo perdido.
Ao povo, a esse, não o vê. Os seus olhos não o atingem.
O povo é a ignorância, diz V., e o que pode a ignorância da nação?
(...)
V. desdenha-o. No entanto, ele é a nossa força social por excelência. Tudo o mais, mesmo o que lhe pareça maior, é nulo. Dê-me os melhores homens de Portugal, as suas maiores capacidades, as suas maiores actividades e não me dê o povo dos nossos dias e Portugal é um país perdido e Portugal é um país morto. Dessas unidades sociais não sairia a sua redenção.
Quem governa Portugal é o povo. É o povo quem decide o seu destino. O José Luciano parece-lhe talvez ainda um personagem consideravelmente influente na sociedade portuguesa. Como se equivoca! O José Luciano não tem influência alguma. O seu sapateiro tem-na muito maior.
(...)
João Chagas, Elogio do povo, em forma de carta a um pessimista, in O ano de 1909, coordenação, pesquisa e selecção de Manuela Rego, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2009, p.68-69